Carta-compromisso elaborada durante o Encontro de Atingidos pela Barragem de Fundão exige inclusão das comunidades atingidas nas negociações do acordo de repactuação do Caso Rio Doce e efetividade do Sistema de Governança

Salmom Lucas

No último final de semana, nos dias 24 e 25 de agosto, foi realizado o Encontro da Bacia do Rio Doce e Litoral Norte Capixaba, em Belo Horizonte (MG), que reuniu representantes de todos os territórios atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, para tratar sobre a governança do processo reparatório e protestar contra as negociações do novo acordo de reparação sem a participação da população atingida. 

O espaço, promovido pelas Instituições de Justiça (Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Ministério Público do Estado de Espírito Santo, Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, Defensoria Pública do Estado de Espírito Santo e Defensoria Pública da União) com o apoio das Assessoria Técnicas Independentes (ATIs) e da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), gestora do Orçamento Atingidos, era aguardado há 6 anos e teve como objetivo promover o preenchimento de vagas, a serem ocupadas pelas pessoas atingidas, no Sistema de Governança e Participação Social previsto no Termo de Ajustamento de Conduta relativo à Governança (TAC-GOV).

Firmado em 2018, o TAC-GOV busca assegurar às pessoas atingidas o direito à participação nas instâncias decisórias e consultivas da governança. Dessa forma, o Encontro simboliza um avanço e nova fase do processo de reparação integral em razão do rompimento, em que a população atingida, por meio de seus representantes, terá o devido protagonismo nas decisões fundamentais para a reconstrução de suas vidas e territórios atingidos.

Durante o Encontro, foram apresentadas as principais demandas dos territórios atingidos que competem a participação social. Também ocorreu a apresentação de candidatos, defesas de candidaturas e votações para para o preenchimento das vagas nas instâncias de governança. Além do processo eleitoral, o espaço foi uma oportunidade para os atingidos e atingidas se manifestarem, na presença do Procurador da República Dr. Felipe Augusto de Barros Carvalho Pinto e demais representantes das instituições de justiça, do Governo Federal e coordenadores dos espaços de governança, sobre as negociações da repactuação que ocorrem, atualmente, sem a participação das pessoas atingidas. 

Em carta aberta lida em plenária, os atingidos pediram que, ao menos, os membros da articulação das Câmaras Regionais eleitos no Encontro sejam chamados para participar das discussões da mesa de repactuação. 

“Os valores ventilados pela mídia apontam que esse novo acordo será insuficiente para a reparação integral e justa, tendo como base os recursos financeiros já previstos nos demais acordos celebrados no Caso Rio Doce. Há um temor de que a repactuação possa jogar por terra todo o esforço e luta das pessoas atingidas para a construção deste encontro que acaba de consolidar o sistema de governança vigente, assim como o que foi construído e deliberado nele, a duras penas, mesmo que de forma tardia. Enquanto as pessoas atingidas se acotovelam por poucas vagas de governança, as empresas criminosas continuam lucrando e violando os direitos do povo, intensificando os rastros de danos deixados pelo rompimento”, traz trecho da carta. 

A leitura da carta que marcou o encerramento do Encontro também reforçou que as pessoas atingidas não irão aceitar o fechamento de acordos sem a garantia da participação efetiva de seus representantes: “Reafirmamos que seguiremos em luta, organizados e organizadas para garantir que as empresas mineradoras reparem integralmente pelos seus crimes e que, de fato, nós, atingidos e atingidas, sejamos os protagonistas na definição dos rumos da nossa reparação e da nossa história”. 

Participação das pessoas atingidas nas negociações

As negociações da repactuação presididas e conduzidas pelo Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6) seguem uma cláusula de confidencialidade, regida pelo Código de Processo Civil (Lei Nº 13.105, de 16 de março de 2015). Por essa razão, até o presente momento, não há previsão da participação de pessoas atingidas na Mesa de Repactuação. 

Leia a carta da íntegra:

CARTA ABERTA DAS ATINGIDAS E ATINGIDOS PELO CRIME DA VALE-SAMARCO-BHP BILLITON NA BACIA DO RIO DOCE E LITORAL CAPIXABA

Belo Horizonte, 25  de agosto de 2024

Após nove anos do crime ambiental da Samarco, Vale e BHP, que tirou a vida de dezenove pessoas e atingiu outras milhões em toda a bacia do Rio Doce e litoral norte capixaba, os/as atingidos/as estão reunidos em Belo Horizonte para definir, de forma organizada e democrática, o preenchimento dos espaços de governança previstos no TAC-Governança assinado em 2018.

A falta de participação dos/as atingidos/as foi a tônica do processo de reparação desde que governos e empresas assinaram o TTAC, que criou a Fundação Renova sem que a população atingida pudesse incidir nas decisões. Por ferir o princípio da centralidade do sofrimento das vítimas, uma ação do Ministério Público Federal resultou na criação do TAC-Gov, que criou espaços participativos para a população atingida dentro das instâncias de governança do processo de reparação.

Dentre esse e tantos outros motivos, ainda há pouco a se comemorar. Entendemos que o processo participativo segue falho. Primeiro, por ser imposto sem discussão, de cima para baixo, com os maiores interessados, os atingidos e atingidas que vêm suportando e amargando as consequências desse crime há quase 10 anos. Segundo, porque os espaços de participação são poucos, insuficientes e não possibilitam uma representatividade de todos os povos e categorias atingidas, tendo em vista a posição minoritária dos atingidos nos conselhos e câmaras técnicas, o que leva à baixa incidência dos atingidos na proposição, avaliação e construção do processo reparatório. Podemos dizer que o atual modelo inviabiliza o protagonismo da população atingida na solução dos seus próprios problemas.

As pessoas atingidas permanecem em processo de sofrimento em decorrência dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, tais como: contaminação da água e dos alimentos; enchentes; invisibilização das mulheres, jovens, idosos e crianças, bem como dos povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais no processo de reparação; a insegurança hídrica e alimentar; o surgimento e/ou acirramento dos conflitos comunitários; o adoecimento mental; o aprofundamento da vulnerabilidade social, econômica e ambiental; a não retomada das atividades econômicas; a alteração dos modos de vida das comunidades atingidas; surgimento e/ou agravamento de danos à saúde; a insuficiência dos cadastros e das indenizações; a não garantia das assessorias técnicas independentes; a destruição da perspectiva de futuro nos territórios para nossas crianças e jovens; a falta de estudos e informações sobre a contaminação dos afluentes do Rio Doce, dentre outros. Assim, queremos pautar, através dessa carta, a priorização dos grupos invisibilizados nos acordos anteriores, bem como a garantia de reparação de todos os danos anteriormente citados. Isso só será garantido se houver a participação de todos e todas

Nesse contexto de violação de direitos e contínua revitimização, as notícias sobre um novo acordo do rio Doce, conhecido como Repactuação, são disseminadas entre o povo atingido, apesar de a mesa que o discute seguir em segredo de justiça e à revelia da participação das pessoas atingidas. Além das empresas e governos que assinaram o TTAC, somam-se a essa negociação as Instituições de Justiça, que inclusive organizam este Encontro da Bacia e Litoral Norte Capixaba. Esse processo precisa garantir pelo menos a participação que o Tac Governança trouxe com a existência das Comissões Locais Territoriais, que foram consolidadas com legitimidade das Instituições de Justiça podendo ainda,  ser ampliado. Nenhuma proposta de sistema de participação pode ser apresentada desrespeitando o que as pessoas atingidas construíram. Queremos que pelo menos os membros da articulação das Câmaras Regionais eleitos neste Encontro sejam chamados a participar da mesa de repactuação.

Os valores ventilados pela mídia apontam que esse novo acordo será insuficiente para a reparação integral e justa, tendo como base os recursos financeiros já previstos nos demais acordos celebrados no Caso Rio Doce. Há um temor de que a repactuação possa jogar por terra todo o esforço e luta das pessoas atingidas para a construção deste encontro que acaba de consolidar o sistema de governança vigente, assim como o que foi construído e deliberado nele, a duras penas, mesmo que de forma tardia. Enquanto as pessoas atingidas se acotovelam por poucas vagas de governança, as empresas criminosas continuam lucrando e violando os direitos do povo, intensificando os rastros de danos deixados pelo rompimento. 

Importante ressaltar que tivemos uma vitória central nesse período, fruto da luta e organização do povo atingido: a aprovação da Política Nacional de Direitos dos Atingidos por Barragens (PNAB) em 15 de dezembro de 2023. A PNAB,  que tem como objetivo principal assegurar os direitos das populações atingidas pela construção, operação, desativação ou rompimento de barragens. A Lei traz em seu escopo a garantia de direitos como o da participação efetiva das pessoas atingidas nos processos e o direito à Assessoria Técnica Independente (ATI). Entretanto, a sua implementação tem sido ignorada pelos governos federal, estaduais e instituições de justiça, que não deram conta de garantir a participação dos atingidos na mesa de repactuação. A ausência da população atingida na mesa de Repactuação significa que quem continua decidindo o futuro de nossos territórios não somos nós que vivemos os danos deixados e sabemos quais caminhos precisam ser tomados para que a reparação aconteça de forma justa e integral.

Nesse sentido, nós, atingidas e atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, de propriedade da Samarco, Vale e BHP Billiton,  de toda a Bacia do rio Doce e Litoral Norte capixaba, que há tantos anos sofremos com a perpetuação das violações de direitos por essas empresas, que impõem, tendo nossas vidas drasticamente atingidas e sem a devida reparação integral aos danos e direitos cotidianamente violados, afirmamos que não aceitaremos o fechamento de acordos sem a nossa voz e participação efetiva. Reafirmamos que seguiremos em luta, organizados e organizadas para garantir que as empresas mineradoras reparem integralmente pelos seus crimes e que, de fato, nós, atingidos e atingidos, sejamos os protagonistas na definição dos rumos da nossa reparação e da nossa história. 

É Tempo de Avançar! Do Rio ao Mar, não vão nos calar! Sem participação, não há repactuação! ATINGIDAS E ATINGIDOS DA BACIA DO RIO DOCE E LITORAL NORTE CAPIXABA