Qual o lugar das mulheres no contexto da reparação no Caso Rio Doce no Espírito Santo? 

O que significa ser mãe nas tantas formas de ser? Sejam mães típicas ou mães atípicas, para ser mãe é preciso ser mulher. Ser mulher na atual sociedade é enfrentar todos os dias as barreiras estruturais do machismo e do patriarcado. Agora perguntamos: E quem é mãe e mulher atingida? Qual lugar ocupa na luta por direitos no processo de reparação? Pensou? 

Ser mãe pode significar diferentes coisas para diferentes pessoas, mas geralmente envolve cuidar, nutrir, educar e apoiar o desenvolvimento físico, emocional e intelectual, e quem na base da sociedade ocupa esse lugar do cuidado para as mulheres? Quem, no cenário do rompimento das barragens, vem sendo abandonada. Dentro do processo reparatório do maior desastre sociotecnológico da história do Brasil, o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana, sob a administração Vale e Samarco, atingiu cerca de aproximadamente 60 milhões de m³ de rejeitos de minério foram despejados no Rio Gualaxo do Norte, alcançando o Rio do Carmo, o Rio Doce e chegando na foz, no Estado do Espírito Santo, causando impacto na saúde, na economia, danos ambientais, problemas no acesso à água potável e problemas sociais e psicológicos para toda a população atingida.  

Neste contexto, destacamos, através de dados levantados pela Assessoria Técnica – Adai, durante a aplicação dos Registros Familiares em 2023, que as mulheres compõem a maior parte dos “grupos sociais de vulnerabilidade”. 

O termo “categorias vulneráveis” ou “grupos prioritários”, em contextos de desastres ou conflitos, referem-se a indivíduos, grupos, famílias ou comunidades que enfrentam dificuldades ou têm acesso limitado às estruturas de oportunidades, direitos sociais e garantias de qualidade de vida, além de recursos materiais e simbólicos para lidar com os riscos existentes. 

De acordo com o levantamento da Adai, as mulheres atingidas enfrentam diversas dificuldades: acesso limitado à renda e à propriedade, oportunidades reduzidas de emprego formal, representação reduzida em espaços de decisão, aumento da violência doméstica por parte do parceiro íntimo, casamento infantil, violência e tráfico sexual, impactos da degradação ambiental, especialmente para aquelas que coletam, produzem e fornecem recursos para suas famílias, empobrecimento e aumento da dependência financeira, carga adicional nos afazeres domésticos, problemas com higiene e saúde pessoal e de seus filhos, entre outras dificuldades. 

É importante ressaltar que entre as mulheres entrevistadas, 78,6% se autodeclaram como mulheres negras. Essa amostra reflete o que tem sido discutido no contexto das mulheres atingidas, que estão sujeitas a diversos marcadores sociais, principalmente de raça e gênero. Em várias esferas, as mulheres negras estão expostas, conforme também evidenciado pelos dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Dia Internacional da Mulher de 2024, que mostram que as mulheres negras são também as mais afetadas por violências, sejam elas psicológicas, físicas ou sexuais, nos 12 meses anteriores à pesquisa, com uma taxa de 6,3%, enquanto a taxa para mulheres brancas foi de 5,7%. 

As mulheres têm lutado por seus direitos ao longo de muitos anos, enfrentando diversas demandas e necessidades relacionadas à sua situação socioeconômica. O processo de reparação apresentado pela Renova também envolve questões de interseccionalidade, conforme fica evidenciado no documento “Demandas do Povo”, feito a partir do levantamento da Adai, que mostra que mais da metade das mulheres entrevistadas enfrenta dificuldades de acesso aos programas de indenização individual.  

Entre as entrevistadas, 50,5% afirmam não ter recebido nenhum tipo de indenização individual, 31,3% afirmam ter recebido a indenização do Sistema Novel, apenas 11,5% afirmam ter recebido a indenização do PIM e 6,5% afirmaram ter ingressado com algum tipo de ação judicial individual. 

Durante a aplicação do Registro Familiar nos territórios trabalhados pela assessoria da Adai,  se conclui que as mulheres continuam tendo muita dificuldade de acessar os programas. Segundo levantamento só no Programa de Cadastro 01, o número de aprovações para homens é superior ao número de aprovações para mulheres, sendo que 82% dos homens foram aprovados no programa de cadastro, enquanto 76% das mulheres foram aprovadas. 

Essas informações representam um retrato de desigualdade de gênero no acesso aos programas, desigualdade esta encontrada pelos especialistas contratados pelo Ministério Público Federal para construir relatórios de monitoramento do processo de execução dos programas de reparação. No relatório da Ramboll (2021), que analisou informações de toda a bacia do Rio Doce e região marítima e estuarina do Espírito Santo, menos de 40% dos titulares do PIM são mulheres. 

Ser mulher já é um processo desafiador numa sociedade que as exclui, oprime e violenta o feminino. Imagine  então  a mulher negra e mãe, que é o caso da maioria das mulheres atingidas, que além de todas as barreiras enfrentadas na sociedade, no ser mulher se encontram os desafios de ter que lidar com doenças causadas pela exposição à lama tóxica, enfrentar a perda de recursos naturais essenciais para a subsistência, não ter acesso aos bens comuns como água potável e terra cultivável, e diariamente  lidar com o trauma emocional ao testemunhar a destruição de suas comunidades, culturas, economias e até mesmo famílias. 

Assim deixamos a reflexão do ser mãe-mulher atingida e às parabenizamos, porque mesmo diante de todos os desafios, não perderam a esperança no processo de reparação para o caso Rio Doce. Neste Dia das Mães, que deveria ser de alegria, amor e cuidado, convidamos você para uma reflexão: Como garantir que essas mulheres que ainda lutam por justiça possam ter seus direitos contemplados? 

“Na avenida deixei lá, a pele preta e a minha voz, minha fala, minha opinião, a minha casa, a minha solidão joguei do alto do terceiro andar, quebrei a cara e me livrei do resto”. Na canção “Mulher do fim do mundo”, da cantora e compositora brasileira, Elza Soares existe a demonstração de que a mulher do fim do mundo é a que grita, que busca, que reivindica, que “sempre fica de pé. No fim, eu sou essa mulher”, eterniza sua luta e inspira a busca pelos direitos das mulheres, principalmente, das mulheres negras pois, afinal, esta revela a mulher que se impõe: “me deixe cantar”, “eu não estou indo embora […], me deixem cantar até o fim. 

A Assessoria Técnica dos Atingidos e Atingidas por Barragens (Adai) segue atuando nos territórios em busca de uma reparação justa, reafirmando-se ao lado das mulheres que lutaram antes e continuam lutando por uma reparação justa para todas e todos, principalmente, para as mulheres, com atenção minuciosa para as mulheres negras que são as mais atingidas pelos resquícios que a lama deixou em suas vidas.  

“Do Rio ao Mar, Nossos Direitos Já!” gritaram as mães atingidas do Espírito Santo.