Atingidos e atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão cobram ampliação da participação no Conselho Federal de Participação Social
Governo Federal propõe Conselho Federal de Participação Social com 20 anos de vigência e pessoas atingidas criticam exclusão e falta de participação e transparência na repactuação
A Articulação das Câmaras Regionais dos atingidos e atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, representada por 17 Territórios, esteve reunida na tarde de ontem (03), na sede do Ministério Público Federal (MPF) em Belo Horizonte, com representantes da Secretaria-Geral da Presidência da República (SGPR), Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Defensoria Pública da União (DPU) e Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) para discutir o Anexo 6 do Acordo de Repactuação, que trata da participação social e da criação do Conselho Federal de Participação Social. O encontro contou ainda com a presença das representantes das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) da Bacia do Rio Doce.
A reunião foi conduzida pelo Ministério Público Federal e acompanhada pela Secretaria-Geral da Presidência da República, que assumiu o papel central nas discussões do Anexo 6 e a estruturação do Conselho Federal de Participação Social. Os representantes do governo federal presentes destacaram os desafios institucionais e as propostas em debate.
Jarbas Vieira, coordenador da Mesa de Diálogo da Secretaria Geral da Presidência fez uma retrospectiva da atuação do Governo Federal no processo da repactuação afirmando que foi realizada caravana nos diversos territórios da Bacia do Rio Doce e que alcançaram mais de três mil pessoas, resultando na proposta de Conselho Federal apresentada no texto do Acordo da repactuação.
Vitor Sampaio, assessor da Secretaria Geral da Presidência, apresentou a complexidade da regulamentação da utilização dos recursos: “O decreto que define a governança e a destinação dos valores ainda não foi concluído. Cada anexo tem suas particularidades, e o BNDES será o gestor do fundo privado que centralizará os recursos”, explicou. Segundo ele, a equipe tem se esforçado para finalizar o texto, com previsão de conclusão na primeira quinzena de fevereiro.
Informou ainda que uma das atribuições do Conselho Federal de Participação Social será monitorar e deliberar sobre o uso do fundo de reparação. “Será um centro de referência de informação, com duração de 20 anos, garantindo paridade de gênero, raça e representação de povos e comunidades tradicionais. Queremos equilibrar eficiência e relevância, garantindo poder de decisão aos atingidos”, afirmou. Sobre a composição do Conselho, acrescentou: “A proposta inicial inclui representantes eleitos no Encontro da Bacia e órgãos governamentais, mas está aberta a ajustes, como a inclusão do Ministério dos Direitos Humanos”, disse.
Vitor reforçou que o Conselho Federal terá autonomia para definir regras internas e critérios de recondução de membros, com apoio técnico de uma Secretaria Executiva vinculada à Presidência. “A estrutura está desenhada para durar duas décadas, com foco em transparência”, disse.
Em resposta aos questionamentos apontados pelas pessoas atingidas, como a exclusão delas nas discussões da Mesa de Repactuação, Vitor Sampaio reconheceu as falhas do processo: “Entendemos a indignação. A Mesa de Repactuação foi coordenada pelo TRF-6, mas assumimos o compromisso de ouvir os atingidos”. Para corrigir as lacunas, de acordo com os representantes do governo federal, uma caravana percorrerá 16 municípios do dia 10 a 14 de março para apresentar aos territórios atingidos as ações previstas no Acordo de Repactuação que estão sob responsabilidade da União. A caravana será dividida em 3 etapas e contará com a participação de representantes de 14 ministérios.
Atingidos e atingidas questionam o acordo de repactuação e cobram ampliação da participação no Conselho Federal
Lanla Maria, atingida de Governador Valadares (Território 4), destacou que a caravana prometida pelo Governo Federal para o município nunca ocorreu. “Não houve! Então você não pode vir aqui dizer que teve. Precisamos de transparência”, afirmou. Ela também criticou a falta de escuta das pessoas atingidas no processo de repactuação.
Márcia, atingida de Linhares (Território 15), questionou o papel do Encontro da Bacia do Rio Doce e Litoral Norte Capixaba – realizado em agosto de 2024 e que teve como objetivo eleger pessoas atingidas para o Sistema de Governança e Participação Social relativo ao TAC-GOV -, alegando que os atingidos foram usados como “massa de manobra”. “Gastaram dinheiro, tempo e um mês depois veio a repactuação. De que valeu aquele trabalho?”. A atingida ressaltou ainda que os (as) eleitos (as) no encontro precisam ser reconhecidos (as) e ter garantida sua participação.
Maria da Penha, atingida de Santa Cruz do Escalvado, afirmou que os atingidos foram “feitos de bobos” e que o Encontro foi apenas um rito para viabilizar a assinatura da repactuação. Ela também criticou o fato de desconhecerem a realidade dos atingidos. “Ficar aqui sem estar em campo é fácil, mas o difícil é encarar o dia a dia”, disse.
Simone Nunes, atingida do território de Rio Casca e Adjacências (Território 1), também apresentou a importância do Encontro da Bacia. “Não dá para anular o que aconteceu. Foi uma correria para organizar, e no fim não valeu de nada? Estamos pedindo que seja garantido o que lutamos para conquistar”, disse.
José Pavuna, atingido do território de Tumiritinga e Galiléia (Território 5), ressaltou a luta pelo direito à terra e ao território, e questionou a legitimidade do processo da repactuação. “O que tem acontecido com os atingidos são cartas marcadas. Precisamos construir algo com os atingidos com o recurso da repactuação. Que democracia é essa que não respeita os eleitos?”, questionou.
Felipe Godoy, atingido do Território do Parque Estadual do Rio Doce e sua Zona de Amortecimento (Território 2), expressou indignação com a exclusão dos atingidos no processo da repactuação. “Eu moro na beira do Rio e não fui reconhecido, mas o que queremos é participar, é uma vergonha ter que conviver com esse acordo de repactuação que não levou em consideração a realidade e o direito das pessoas atingidas de participar.
Mirela, atingida de Mariana, destacou os danos psicológicos que as pessoas atingidas vivem cotidianamente. “Esse processo é adoecedor e carregar essa carga é pesado demais”, afirmou. Ela também questionou se a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB) foi considerada na repactuação e cobrou respostas.
Cláudia, atingida de São Mateus, território da Macrorregião Litoral Norte (Território 16), criticou a falta de representação dos atingidos. “Se sairmos daqui sem os nomes dos nossos representantes, seremos mais uma vez excluídos. Os municípios já estão se organizando para gastar esse dinheiro, e quem vive os danos no dia a dia não verá nada”, afirmou.
Simone, atingida de Gesteira (Barra Longa), denunciou o racismo no processo de reparação. “Quando houve o processo da repactuação o Quilombo de Gesteira já estava certificado pela Palmares, Gesteira foi levada pela lama e ainda assim não foi considerada pela Câmara Técnica de Indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais (CT IPCT), mesmo apresentando antes da assinatura do acordo”, ao relatar a exclusão do Quilombo de Gesteira na repactuação.
Madalena, atingida do Quilombo da Ilha Funda do território do Vale do Aço (Território 3), reforçou a luta dos quilombolas por reconhecimento. “Nossa história está no Rio Doce desde 1930, e não fomos considerados na repactuação”, disse.
Resposta do Governo Federal
Vitor Sampaio, da Secretaria-Geral da Presidência da República, reafirmou a importância de ouvir os/as atingidos/as e explicou que a proposta não busca desconsiderar o Encontro da Bacia, mas sim aprimorar a governança. Segundo ele, a meta é garantir uma estrutura paritária entre atingidos/as e órgãos federais, com a inclusão para além das quatro pessoas atingidas eleitas para o Comitê Interfederativo (CIF), a seleção de mais representantes, entretanto se comprometeu a levar e analisar a proposta das pessoas atingidas que visa ampliar a participação para os 75 eleitos no encontro da Bacia do Rio Doce e Litoral Norte Capixaba, realizado em agosto de 2024.
Jarbas, reforçou a disposição do governo em dialogar e mencionou a iniciativa das caravanas, que levarão informações aos atingidos com apoio de 14 ministérios.
“Quem tem legitimidade para dizer se se sente reparado ou não jamais será o Governo Federal”, destacou Vitor. Segundo ele, a proposta apresentada não invalida nem exclui as decisões tomadas anteriormente, mas busca garantir maior participação e efetividade no Conselho de Participação.
“Nosso objetivo é aprimorar o processo, não impor mudanças. Se fosse uma imposição, chegaríamos aqui com um ato normativo pronto para ser publicado, e não com uma proposta aberta para discussão”, acrescentou.
Entenda o conselho e a proposta apresentada
O Conselho terá como função primordial monitorar, avaliar e fiscalizar as ações previstas no acordo de reparação, além de deliberar sobre os critérios de gestão dos recursos financeiros, sob responsabilidade da União, destinados às comunidades atingidas. A transparência será um dos pilares da iniciativa, para garantir o acesso à informação e permitir que a sociedade civil acompanhe o andamento dos projetos. O conselho também poderá sugerir ajustes em políticas públicas e projetos estruturantes, buscando uma reparação mais eficaz e alinhada às necessidades locais.
Composição e representação
A proposta inicial prevê a participação de representantes da sociedade civil, de órgãos governamentais e de convidados das instituições de justiça. Entre os principais critérios de composição, destacam-se:
- Paridade de gênero: mínimo de 50% das vagas reservadas para mulheres.
- Raça e etnia: mínimo de 20% de pessoas autodeclaradas pretas ou pardas, indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais.
- Possibilidade de convites a outros atores a depender do tema a ser discutido
- Representação mista:
Sociedade civil: O acordo de repactuação prevê apenas quatro vagas para as pessoas atingidas, mas levando-se em consideração o modelo de governança construído a partir do Encontro da Bacia, os atingidos e atingidas sugeriram ampliar para 25 titulares e dois suplentes por território. Esta proposta foi ratificada pelo MPF e MPMG e o Governo Federal se comprometeu a levá-la para discussões internas.
Órgãos governamentais: Ministérios e outros órgãos envolvidos na execução do acordo.
Instituições de justiça: Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e Defensoria Pública da União (DPU) participarão como ouvintes.
Duração e estrutura do Conselho
Para garantir a continuidade da fiscalização independente de mudanças de governo, o Conselho Federal de Participação Social terá vigência de 20 anos. A Secretaria Executiva, vinculada à Secretaria-Geral da Presidência da República, será responsável por fornecer capacitação técnica e suporte logístico.
As reuniões serão bimestrais, com possibilidade de convocação extraordinária quando necessário. As decisões serão tomadas por maioria absoluta para mudanças estruturais e por maioria simples para demais deliberações.
Fundo de Participação Social e gestão dos recursos
O Fundo de Participação Social será utilizado para financiar projetos comunitários nos territórios atingidos. Cada cidade ou comunidade tradicional terá direito a pelo menos um projeto financiado. A gestão será feita pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que centralizará os recursos em um fundo privado, com fiscalização do Conselho.
Reivindicações das pessoas atingidos
A proposta inicial de apenas quatro vagas para a sociedade civil foi alvo de contestação, com os atingidos exigindo três representantes por território. Outro ponto polêmico foi a legitimidade do Encontro da Bacia, que elegeu 75 representantes em 2024. O governo propôs reduzir esse número para 48 vagas no conselho, o que gerou insatisfação entre os atingidos durante a reunião. Além disso, quilombolas de comunidades como Gesteira (Barra Longa/MG) e Ilha Funda (Periquito/MG) denunciaram exclusão na repactuação e reivindicaram participação direta.
MPMG defende manutenção de modelo participativo
O assessor do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Luis Tarcízio, ressaltou a importância da estrutura participativa construída ao longo dos últimos anos no processo de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão. Segundo ele, o modelo atual – resultado de amplo diálogo, participação efetiva das pessoas atingidas, com o processo de consolidação e eleições das comissões de atingidos na maioria dos Teri com o apoio e atuação das assessorias técnicas independentes – deve ser a base para qualquer aperfeiçoamento na governança.
Tarcízio destacou que o Encontro da Bacia foi resultado de um longo processo iniciado pelo menos um ano antes de sua realização, com ampla articulação entre as pessoas atingidas. “Esse arranjo de participação é uma construção de oito anos. O Encontro de Bacia não foi um evento isolado, mas o resultado de um trabalho contínuo”, afirmou.
Ele também enfatizou a importância do Fórum de Articuladores, que consolidou a representatividade dos atingidos e atingidas ao definir um sistema de escolha dos representantes. “As comunidades indicaram seis representantes, dos quais foram definidos um titular e dois suplentes. Esse modelo acumula força social e um investimento técnico significativo do MPF e do MPMG”, explicou.
Texto: Salmom Lucas
Revisão: Equipes das ATIs do Bacia do Rio Doce